No LEV (Literatura em Viagem), texto da comunicação de João Luís Barreto Guimarães (Notas) - Matosinhos, Domingo, 26 de Maio de 2013
Ao
tomar conhecimento do tema proposto para esta mesa, uma vez mais como
já vai sendo hábito em mim, estive para declinar o convite. Não me apraz
muito discorrer sobre este tipo de temas de cariz genérico que
inevitavelmente se apresentam sob a forma de um cliché: o género
literário que vou praticando, a poesia, presta-se pouco a
generalizações; e a língua que utilizo para escrever poesia, a língua
portuguesa, pode ser uma “festa” ou não. Pode ser um autêntico desastre.
Além de que, na minha modesta opinião, todas as línguas podem ser uma
“festa”. Depende muito do uso que fazemos delas. A nossa língua pode ser
uma “festa” aqui, em Portugal, como pode ser no Brasil ou nos países
africanos de língua portuguesa, como pode ser nas mãos de quem quer que
saiba falar ou escrever português num qualquer canto obscuro da
diáspora. Ou do exílio.
Por isso mesmo não vos vou tomar muito tempo. Sinceramente não sei responder à questão de qual deve ser o nosso papel numa política global da língua. Defender o seu correcto uso e preservação, certamente, difundir a sua utilização, promove-la através do Instituto Camões ou outros institutos próprios? Talvez. Sou apenas um falante, um poeta e felizmente que não me cabe nenhuma dessas tarefas. Como também não me parece que o Brasil queira alguma vez que Portugal seja o seu co-piloto como se sugere no convite, o que pressupõe uma situação de dependência formal. Dos escritores brasileiros que conheci nenhum tinha em relação aos colegas portugueses qualquer sentimento de superioridade literária ou institucional. Pelo contrário, ficam fascinados quando conseguem sentir orgulho na utilização da Língua-Mãe.
Mas que orgulho pode ser esse? Para responder a esta questão que eu próprio me coloco, precisaria talvez de definir primeiro a palavra “festa” que dá corpo ao tema desta mesa. “Festa” é uma palavra que, já de si, tem muito pouco a ver com poesia. Ou que pelo menos suscita caminhos divergentes e ambíguos. A poesia jocosa e satírica de Bocage será uma “festa”? Talvez. Trata-se de uma leitura que ainda hoje provoca sorrisos em que a lê. Mas seguramente que leitores haverá para quem a escrita de Maria Gabriela Llansol também é uma “festa”, um arrancar de sorrisos interiores de satisfação. O que define verdadeiramente se a utilização da língua é, ou pode ser, uma “festa”? A ironia, o sarcasmo, o humor na poesia de Alexandre O’Neill, ou a cuidadosa dicção, o aporte de pensamento ou a intelecção na poesia de Herbero Helder?
A poesia faz-se com linguagem, com a língua, e é dessa utilização que em última instância sairá a definição de “festa”. Por isso, para tentar sair airosamente desta cilada que me montaram – e na qual eu aceitei com muito gosto cair - alargarei o conceito de “festa” ao de “gozo”, “deleite”, “prazer” que a língua pode ter do ponto de vista do leitor. E, um pouco abusivamente, estreitarei o conceito de “língua portuguesa” ao de “poesia”, já que é fundamentalmente nesse género literário que me movimento para assim me convidar oficiosamente para esta mesa, agora com um tema próprio e exclusivo próximo deste: “A poesia proporcionará deleite ou prazer?”.
A poesia pode proporcionar prazer – do ponto de vista do leitor – se o poeta observar três ou quatro características na sua escrita.
Em primeiro lugar, se estabelecer com o leitor um jogo de inteligência. Se se estabelecer entre poeta e leitor, um comércio de inteligência, de sapiência, de sabedoria. Se o poeta despertar a inteligência do leitor dentro de um limite de razoabilidade, não o excluindo da experiência do poema, antes convidando-o ao conhecimento, como escrevia Steiner, descendo a um nível de intelecção não tão baixo que transforme o poema numa banalidade fácil mas suficientemente baixo para que o leitor possa ter pé, como numa piscina de várias profundidades, e sinta o apelo de subir. O que se troca entre poeta e leitor ao longo dos versos são alusões, referências, conhecimento, intertextualidades e o poeta pode e deve lançar um verso ao leitor para que este o agarre, e possa no decorrer da leitura sentir a alegria do re-conhecimento, o deleite da identificação, o prazer da universalidade de forma a que sinta um estímulo para trepar, agarrar, querer subir, querer saber mais. Os riscos desta relação oculta entre poeta e leitor no intercâmbio de conhecimento são conhecidos: com a ânsia de cativar mais leitores, o poeta pode sentir-se tentado a descer baixo demais nessa imaginária escala de exigência, e ceder a uma facilidade, a um populismo que prejudique a qualidade do seu escrito.
Por outro lado, como o conhecimento, ao leitor, lhe custa tempo, esforço, horas de leitura (e dinheiro), este pode não conseguir ou não querer agarrar o isco da alusão porque lhe custa, porque não lhe é fácil, simplesmente porque não tem as bases para o fazer. Por isso é importante perceber-se à partida que, infelizmente, num país atrasado como o nosso, o jogo da leitura não é um jogo para muitos mas apenas para alguns – para os que querem – por exemplo, os que estão aqui a assistir a esta palestra, e nesse sentido, aceitar à partida que há um limite de dificuldade abaixo do qual um poeta nunca desce. Isto é válido para um escritor mas também para as outras artes: a música, a pintura, o cinema, etc. Descer abaixo desse nível de facilidade, para um poeta como para outro criador, seria ofender a sua própria arte, ofender a tradição. Para cada um dos poetas, esse limite é condicionado pela sua Visão de Mundo, tanto quanto por outras características que tentarei trazer ao texto, de seguida.
Ou seja: trata-se de um jogo, de um comércio entre leitor e poeta que pressupõe para ambas as partes direitos e deveres. E que, na minha opinião, exclui os extremos absolutos: o populismo mais fácil e o hermetismo total. Um poeta tem o direito de optar por não ser absolutamente hermético na sua escrita para poder ser lido – e comunicar, e partilhar ideias e pensamentos – mas por outro lado só o será para os leitores que cumprirem o dever de fazer um esforço contínuo de aprender a movimentar-se por entre as estrofes e os versos desta arte a que se convencionou chamar poesia, ou seja, àqueles que a determinada altura do seu processo de aprendizagem e leitura passaram a conhecer as convenções dessa mesma arte, isto é, leram os clássicos e sabem reconhecer algumas senão a maior parte das regras da poesia. E que, decididamente, têm hábitos de leitura. Ou seja, à sua maneira e também através da leitura, aspiram a ser cultos. Só assim é possível esse comércio de inteligência, de ideias, de pensamento.
O segundo dever de um poeta é para com a originalidade. Um poeta deve ter brio, mas fundamentalmente ética na sua escrita, quer isto dizer que deve tentar despertar a surpresa nos seus leitores, recorrendo à imaginação e à criatividade. Deve esforçar-se por não publicar mais uma obra igual a tantas outras, não deve perder o espírito de autocrítica ao longo da sua obra poética, de forma a nem se repetir, nem deixar de surpreender os seus leitores. Deve aspirar a ser um dos melhores, escreveu-me um dia José Miguel Silva, exactamente um dos melhores. Deve tentar superar-se. Ao mesmo tempo que tem o direito de descer um degrau até ao nível do quotidiano – onde nunca deverá esquecer o cuidado com a linguagem, com a língua - tem por outro lado o dever de elevar o leitor, de livro para livro, até territórios então menos conhecidos.
Obrigar os leitores a pensar, dar-lhes trabalho, não lhes pôr as coisas fáceis. Obrigá-los a raciocinar, a reflectir, a reagir aos poemas. E dar-lhes como bónus a “festa”, a alegria da surpresa no uso feliz da língua. Alguma coisa química, uma molécula, um neurotransmissor se liberta quando os olhos exteriores levam até ao “olho da mente” de que falava Shakespeare, esse estremeção de novidade e re-conhecimento. Isto só o consegue o poeta que para além de possuir um espírito ético inabalável e uma coragem assinalável, for dono de um espírito de autocrítica fortíssimo. E quem, não tendo pressa, tiver tempo. Não correr atrás da edição. Porque os seus leitores, aqueles que tiveram a amabilidade de o acompanhar até esse estadío da sua obra, são secretamente exigentes e vão querer sempre mais de um autor. Quando sigo um poeta como leitor – e sigo vários – pergunto-me sempre o que será que irá fazer a seguir, se irá conseguir superar-se como poeta. E aqueles que são eticamente briosos, conseguem. Ezra Pound escrevia “make it new”, frase de onde se depreende “otherwise don’t make it at all”. A “festa”, de que fala o título desta mesa, é também esse gozo de perceber que o poema, a crónica, o ensaio, o romance que estamos a ler não só está bem escrito em termos formais, não só é uma boa ideia, como também é algo de novo, algo original, algo que ainda não tinha sido feito, ou dito, daquela maneira.
O terceiro dever, em literatura, é o da profundidade. E compreensivelmente, esta só se adquire com o tempo. É desculpável que quer o leitor, quer o poeta não apreenda, o primeiro, ou não escreva, o segundo, com essa desejável densidade de linguagem numa primeira leitura, ou escrita, de um primeiro livro, mas é desejável que de livro para livro, de leitura para leitura, de ano para ano, de experiência de vida para experiência de vida o vá conseguindo fazer, ou seja, que o poema seja escrito e lido com as diversas camadas que possui. Por mais simples que pareça. A simplicidade é das coisas mais difíceis de atingir em poesia. Mas simplicidade não é, em poesia, antónimo de densidade.
O que se pretende é que em cada leitura ou em cada poema escrito, quer para o leitor quer para o poeta estejam cada vez mais evidentes e presentes o sentido trágico da vida no esplendor da sua complexidade - o enigma, o mistério de que falava Tomas Transtömer. Essa densidade, num poema, atinge-se pela contaminação da poesia pela biologia, a física, a química, a história, a filosofia, a sociologia, a antropologia, as belas artes, as religiões, a mitologia, e principalmente, a própria literatura.
O que isto quer dizer é que nem só de oficina se faz um poema. Um poema contemporâneo vive muito desse magnífico piscar de olho à tradição. Para que a poesia se torne um vicio de conhecimento, de inteligência, de originalidade, de profundidade. Para que se torne uma “festa” para os sentidos, seja em que língua for, em português de Portugal, em português do Brasil, em inglês, alemão, francês, italiano, castelhano, basco, galego ou catalão. Todas as línguas podem ser uma “festa” se se conseguir estabelecer pela qualidade dos textos, um código entre leitor e autor em que cada um oferece ao outro o sublime momento da escrita e da leitura, o máximo que sabe dar: o poeta, desafiando a inteligência do leitor, trazendo-lhe conhecimento, originalidade, e acessibilidade e dificuldade q.b.; o leitor, não desistindo à mais pequena dificuldade, confiando na ética do autor, pesquisando, preparando-se de livro para livro para um enredo cada vez mais denso e profundo. Esse comércio é um intercâmbio de Visões de Mundo, é a linguagem ao serviço do pensamento, e pode, realmente, ser uma “festa”.
Era isto o que tinha para vos dizer hoje. Até à próxima. Até logos.
João Luís Barreto Guimarães
7º Encontro Internacional de Literatura Em Viagem
Matosinhos, 26 de maio de 2013
https://www.facebook.com/notes/jo%C3%A3o-lu%C3%ADs-barreto-guimar%C3%A3es/a-l%C3%ADngua-portuguesa-%C3%A9-uma-festa/10200671311897598
Por isso mesmo não vos vou tomar muito tempo. Sinceramente não sei responder à questão de qual deve ser o nosso papel numa política global da língua. Defender o seu correcto uso e preservação, certamente, difundir a sua utilização, promove-la através do Instituto Camões ou outros institutos próprios? Talvez. Sou apenas um falante, um poeta e felizmente que não me cabe nenhuma dessas tarefas. Como também não me parece que o Brasil queira alguma vez que Portugal seja o seu co-piloto como se sugere no convite, o que pressupõe uma situação de dependência formal. Dos escritores brasileiros que conheci nenhum tinha em relação aos colegas portugueses qualquer sentimento de superioridade literária ou institucional. Pelo contrário, ficam fascinados quando conseguem sentir orgulho na utilização da Língua-Mãe.
Mas que orgulho pode ser esse? Para responder a esta questão que eu próprio me coloco, precisaria talvez de definir primeiro a palavra “festa” que dá corpo ao tema desta mesa. “Festa” é uma palavra que, já de si, tem muito pouco a ver com poesia. Ou que pelo menos suscita caminhos divergentes e ambíguos. A poesia jocosa e satírica de Bocage será uma “festa”? Talvez. Trata-se de uma leitura que ainda hoje provoca sorrisos em que a lê. Mas seguramente que leitores haverá para quem a escrita de Maria Gabriela Llansol também é uma “festa”, um arrancar de sorrisos interiores de satisfação. O que define verdadeiramente se a utilização da língua é, ou pode ser, uma “festa”? A ironia, o sarcasmo, o humor na poesia de Alexandre O’Neill, ou a cuidadosa dicção, o aporte de pensamento ou a intelecção na poesia de Herbero Helder?
A poesia faz-se com linguagem, com a língua, e é dessa utilização que em última instância sairá a definição de “festa”. Por isso, para tentar sair airosamente desta cilada que me montaram – e na qual eu aceitei com muito gosto cair - alargarei o conceito de “festa” ao de “gozo”, “deleite”, “prazer” que a língua pode ter do ponto de vista do leitor. E, um pouco abusivamente, estreitarei o conceito de “língua portuguesa” ao de “poesia”, já que é fundamentalmente nesse género literário que me movimento para assim me convidar oficiosamente para esta mesa, agora com um tema próprio e exclusivo próximo deste: “A poesia proporcionará deleite ou prazer?”.
A poesia pode proporcionar prazer – do ponto de vista do leitor – se o poeta observar três ou quatro características na sua escrita.
Em primeiro lugar, se estabelecer com o leitor um jogo de inteligência. Se se estabelecer entre poeta e leitor, um comércio de inteligência, de sapiência, de sabedoria. Se o poeta despertar a inteligência do leitor dentro de um limite de razoabilidade, não o excluindo da experiência do poema, antes convidando-o ao conhecimento, como escrevia Steiner, descendo a um nível de intelecção não tão baixo que transforme o poema numa banalidade fácil mas suficientemente baixo para que o leitor possa ter pé, como numa piscina de várias profundidades, e sinta o apelo de subir. O que se troca entre poeta e leitor ao longo dos versos são alusões, referências, conhecimento, intertextualidades e o poeta pode e deve lançar um verso ao leitor para que este o agarre, e possa no decorrer da leitura sentir a alegria do re-conhecimento, o deleite da identificação, o prazer da universalidade de forma a que sinta um estímulo para trepar, agarrar, querer subir, querer saber mais. Os riscos desta relação oculta entre poeta e leitor no intercâmbio de conhecimento são conhecidos: com a ânsia de cativar mais leitores, o poeta pode sentir-se tentado a descer baixo demais nessa imaginária escala de exigência, e ceder a uma facilidade, a um populismo que prejudique a qualidade do seu escrito.
Por outro lado, como o conhecimento, ao leitor, lhe custa tempo, esforço, horas de leitura (e dinheiro), este pode não conseguir ou não querer agarrar o isco da alusão porque lhe custa, porque não lhe é fácil, simplesmente porque não tem as bases para o fazer. Por isso é importante perceber-se à partida que, infelizmente, num país atrasado como o nosso, o jogo da leitura não é um jogo para muitos mas apenas para alguns – para os que querem – por exemplo, os que estão aqui a assistir a esta palestra, e nesse sentido, aceitar à partida que há um limite de dificuldade abaixo do qual um poeta nunca desce. Isto é válido para um escritor mas também para as outras artes: a música, a pintura, o cinema, etc. Descer abaixo desse nível de facilidade, para um poeta como para outro criador, seria ofender a sua própria arte, ofender a tradição. Para cada um dos poetas, esse limite é condicionado pela sua Visão de Mundo, tanto quanto por outras características que tentarei trazer ao texto, de seguida.
Ou seja: trata-se de um jogo, de um comércio entre leitor e poeta que pressupõe para ambas as partes direitos e deveres. E que, na minha opinião, exclui os extremos absolutos: o populismo mais fácil e o hermetismo total. Um poeta tem o direito de optar por não ser absolutamente hermético na sua escrita para poder ser lido – e comunicar, e partilhar ideias e pensamentos – mas por outro lado só o será para os leitores que cumprirem o dever de fazer um esforço contínuo de aprender a movimentar-se por entre as estrofes e os versos desta arte a que se convencionou chamar poesia, ou seja, àqueles que a determinada altura do seu processo de aprendizagem e leitura passaram a conhecer as convenções dessa mesma arte, isto é, leram os clássicos e sabem reconhecer algumas senão a maior parte das regras da poesia. E que, decididamente, têm hábitos de leitura. Ou seja, à sua maneira e também através da leitura, aspiram a ser cultos. Só assim é possível esse comércio de inteligência, de ideias, de pensamento.
O segundo dever de um poeta é para com a originalidade. Um poeta deve ter brio, mas fundamentalmente ética na sua escrita, quer isto dizer que deve tentar despertar a surpresa nos seus leitores, recorrendo à imaginação e à criatividade. Deve esforçar-se por não publicar mais uma obra igual a tantas outras, não deve perder o espírito de autocrítica ao longo da sua obra poética, de forma a nem se repetir, nem deixar de surpreender os seus leitores. Deve aspirar a ser um dos melhores, escreveu-me um dia José Miguel Silva, exactamente um dos melhores. Deve tentar superar-se. Ao mesmo tempo que tem o direito de descer um degrau até ao nível do quotidiano – onde nunca deverá esquecer o cuidado com a linguagem, com a língua - tem por outro lado o dever de elevar o leitor, de livro para livro, até territórios então menos conhecidos.
Obrigar os leitores a pensar, dar-lhes trabalho, não lhes pôr as coisas fáceis. Obrigá-los a raciocinar, a reflectir, a reagir aos poemas. E dar-lhes como bónus a “festa”, a alegria da surpresa no uso feliz da língua. Alguma coisa química, uma molécula, um neurotransmissor se liberta quando os olhos exteriores levam até ao “olho da mente” de que falava Shakespeare, esse estremeção de novidade e re-conhecimento. Isto só o consegue o poeta que para além de possuir um espírito ético inabalável e uma coragem assinalável, for dono de um espírito de autocrítica fortíssimo. E quem, não tendo pressa, tiver tempo. Não correr atrás da edição. Porque os seus leitores, aqueles que tiveram a amabilidade de o acompanhar até esse estadío da sua obra, são secretamente exigentes e vão querer sempre mais de um autor. Quando sigo um poeta como leitor – e sigo vários – pergunto-me sempre o que será que irá fazer a seguir, se irá conseguir superar-se como poeta. E aqueles que são eticamente briosos, conseguem. Ezra Pound escrevia “make it new”, frase de onde se depreende “otherwise don’t make it at all”. A “festa”, de que fala o título desta mesa, é também esse gozo de perceber que o poema, a crónica, o ensaio, o romance que estamos a ler não só está bem escrito em termos formais, não só é uma boa ideia, como também é algo de novo, algo original, algo que ainda não tinha sido feito, ou dito, daquela maneira.
O terceiro dever, em literatura, é o da profundidade. E compreensivelmente, esta só se adquire com o tempo. É desculpável que quer o leitor, quer o poeta não apreenda, o primeiro, ou não escreva, o segundo, com essa desejável densidade de linguagem numa primeira leitura, ou escrita, de um primeiro livro, mas é desejável que de livro para livro, de leitura para leitura, de ano para ano, de experiência de vida para experiência de vida o vá conseguindo fazer, ou seja, que o poema seja escrito e lido com as diversas camadas que possui. Por mais simples que pareça. A simplicidade é das coisas mais difíceis de atingir em poesia. Mas simplicidade não é, em poesia, antónimo de densidade.
O que se pretende é que em cada leitura ou em cada poema escrito, quer para o leitor quer para o poeta estejam cada vez mais evidentes e presentes o sentido trágico da vida no esplendor da sua complexidade - o enigma, o mistério de que falava Tomas Transtömer. Essa densidade, num poema, atinge-se pela contaminação da poesia pela biologia, a física, a química, a história, a filosofia, a sociologia, a antropologia, as belas artes, as religiões, a mitologia, e principalmente, a própria literatura.
O que isto quer dizer é que nem só de oficina se faz um poema. Um poema contemporâneo vive muito desse magnífico piscar de olho à tradição. Para que a poesia se torne um vicio de conhecimento, de inteligência, de originalidade, de profundidade. Para que se torne uma “festa” para os sentidos, seja em que língua for, em português de Portugal, em português do Brasil, em inglês, alemão, francês, italiano, castelhano, basco, galego ou catalão. Todas as línguas podem ser uma “festa” se se conseguir estabelecer pela qualidade dos textos, um código entre leitor e autor em que cada um oferece ao outro o sublime momento da escrita e da leitura, o máximo que sabe dar: o poeta, desafiando a inteligência do leitor, trazendo-lhe conhecimento, originalidade, e acessibilidade e dificuldade q.b.; o leitor, não desistindo à mais pequena dificuldade, confiando na ética do autor, pesquisando, preparando-se de livro para livro para um enredo cada vez mais denso e profundo. Esse comércio é um intercâmbio de Visões de Mundo, é a linguagem ao serviço do pensamento, e pode, realmente, ser uma “festa”.
Era isto o que tinha para vos dizer hoje. Até à próxima. Até logos.
João Luís Barreto Guimarães
7º Encontro Internacional de Literatura Em Viagem
Matosinhos, 26 de maio de 2013
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