“As pessoas gostam de usar palavras que não são de ninguém. Todos os dias há milhões de sentimentos, de desejos, de opiniões expressas com palavras forasteiras. Quantas vezes serão os sentimentos a adequar-se às palavras, e não o contrário? Seremos tão parecidos que não precisemos de encontrar as palavras que nos sirvam?
Os artistas têm muitos nomes para diferentes azuis, os esquimós têm muitas palavras para diferentes tipos de gelo. Os apaixonados deveriam ter também muitas palavras para o “amor”: o amor da manhã, o amor do fim, o amor do passado, o amor possível.
Todos deveríamos ter diferentes palavras para “eu”: o eu que eu sinto, o eu que tu vês, o eu que não sou.
A parte pelo todo, o todo pela parte. Andamos nisso, a praticar sinédoques como se falássemos ou quiséssemos bem a alguém, tomando a parte pelo todo que não haveremos nunca de conhecer. Assim conseguimos dormir muitas noites enquanto dizemos para dentro “está tudo bem, não penses mais nisso”.
(Nuno Camarneiro, “No meu peito não cabem pássaros”, p. 50)