terça-feira, 23 de abril de 2013

SUBTIS MARAVILHAS DOS LIVROS


Os livros hão-de ter vida própria, parece-me, pois só este amável mistério explicará o facto de no caos das minhas estantes sempre se organizarem espontaneamente pequenos comités de racionalidade acidental. Por exemplo, o indiano Siddhartha, de Hermann Hess, foi juntar-se a O Feitiço da Índia, de Miguel Real, e ao parcialmente indiano O Colecionador de Mundos, de Ilija Trojanow. A pequena pilha amontoou-se, porém, sobre Na Patagónia, de Bruce Chatwin, desmoronando, pensei, a bela coincidência que ali se engendrara.

Tinha acabado de constatar esta aparente incongruência quando abri Joseph Anton do também indiano Salman Rushdie, aí constatando que, no dia em que foi sentenciado à morte pelo imã (14 de Fevereiro de 1989), o escritor dos Versículos Satânicos ainda participou, antes de passar à clandestinidade, no funeral de... Bruce Chatwin — assim confirmando de um modo bizarro a rebuscada lição de Siddhartha segundo a qual todas as coisas estão unidas mesmo quando parecem opor-se e contradizer-se.

É provável, de resto, que nunca venha a ser capaz de explicar de modo conveniente isto de os livros serem capazes de gerar subtis maravilhas. Em todo o caso, pude presenciar uma no sábado à noite, quando uma senhora de 84 anos quis tirar uma fotografa comigo no final de uma sessão na FNAC do Gaiashopping, e depois que lhe autografasse um exemplar de Aonde o Vento Me Levar. Dadas as circunstâncias, o caso não teria nada de especial. Eu tinha estado a falar daquele romance e várias pessoas quiseram, no final da sessão, que lhes autografasse os livros. Mas a senhora de 84 anos, segundo depois me explicou a mulher que a acompanhava, é analfabeta e nem sequer iria ser capaz de ler o livro que acabara de comprar. Alguma coisa do que ouvira a tinha, ainda assim, feito comprar o Aonde o Vento Me Levar, enchendo-me de perplexidade.

Agrada-me pensar, por isso, que a esta hora alguém estará a ler em voz alta o livro que eu escrevi, e que a senhora anda com M. viajando por África sem lá ter ido; e que aquela ficção destrambelhada termine por ocupar o lugar que lhe é devido na enorme biblioteca que há-de ser a memória de uma mulher de 84 anos.


Sem comentários: