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A mesa em que nos reuníamos às refeições, com duas abas que se abriam, mal chegava para tanta gente, tantos braços mexer e bocas a comer e só algumas a falar, tanto banco e tanta cadeira a gemer. Ao todo éramos nove, pai, mãe, seis filhos e a tia Cecília, irmã da minha mãe, viúva e sem filhos, a viver connosco.
– Come, Lourdes! Está calado, Mário! Tem juízo, Chico, não irrites a tua irmã! Essas batatas são para comer até ao fim! Não ficam aí no prato! Não se come uma azeitona de uma só vez! Não se trata assim uma coisa que leva um ano a criar! À mesa não se fala! Tu, aí, põe-te direito na cadeira, e chega-te para a frente. – Era assim todos os dias, duas vezes ao dia.
Durante uma certa fase do nosso viver comum, depois do jantar e ainda à mesa, o pai lia-nos um capítulo de um livro que sabia escolher na nossa pequena biblioteca ou na da Sociedade Harmonia Eborense. Esta meia hora de leitura foi, durante muito tempo, o nosso folhetim radiofónico ou a nossa telenovela. Ouvimos, assim, diariamente e com a maior atenção, essas leituras que o pai fazia na perfeição, valorizando o texto com inflexões de voz e gestos a condizer.
Foi deste modo, que “lemos”, através dos seus olhos e da sua palavra, entre outras volumosas obras, “A Toutinegra do Moinho”, de Émile Richebourg, “A Execução dos Távoras”, de César da Silva, a “Guerra e Paz”, de Leon Tolstoi, e a “Revolução Francesa”, em três grandes volumes, cujo autor não fixei.
No final tinha lugar um ritual cumprido por todos os filhos que, após pedirem licença para se levantar, saíam do seu lugar e davam uma volta à mesa a desejar a cada um dos ainda sentados o tradicional «bom proveito», seguido de um beijo em cada face. Este ritual, que punha fim a um tempo de compostura controlada, marcava também o retomar da liberdade, das brincadeiras e das brigas, em crianças, e das discussões acaloradas ou das saídas à pressa dos rapazes, com destino ao seus próprios interesses, quando mais crescidos. As meninas ficavam em casa a estudar ou a ajudar a mãe e a tia.
– Bom proveito, meu paizinho. – Era assim que dizíamos, com o pai ainda sentado, sempre mais pausado no final da refeição, para ele, também, uma oportunidade de repouso. À mãe e à tia, o mesmo acto de boas maneiras era dito já na cozinha ou a meio caminho, no levantar da mesa. Nessa mesa festejámos em conjunto não sei quantas, mas muitas, consoadas.
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Era a «mesa dos sessenta pés», como dizia o pai. Dezoito das pessoas que a ela se sentavam, mais trinta e seis dos nove bancos e cadeiras e, ainda, mais os seus próprios seis pés. Tudo somado, dava os ditos sessenta pés. Desses tempos ficou-me a mesa. Depois de tantos anos e de muitas voltas, veio parar às minhas mãos. Está hoje em casa de um dos meus filhos que a mandou consolidar e restaurar um dos pés, meio comido pelo caruncho, na convicção, quero imaginar, de que voltará um dia a ser mesa de muitos pés.
Galopim de Carvalho
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