PRETO É O CARVÃO, TU ÉS NEGRO
Foi assim que em ensinaram quando a cor da minha pele passou a ser questão na minha jovem existência. Não me lembro exatamente quando foi, mas sei que veio lá de casa e como tudo o que vem de casa é assimilado sem mais porquês, aceitei isso como verdade e segui, colhendo aqui e ali o que os livros e a sociedade me ofereciam para fortalecer o meu sentido de identidade, que sempre teve mais ênfase nas questões nacionalistas do que propriamente raciais.
(…)
Sabemos que é da condição humana, conviver com o diferente sempre nos fez bastante comichão, seja ela a diferença intelectual, económica ou racial. Como tento ser uma pessoa melhor todos os dias, prefiro ser e ir além da cor, ser do tamanho daquilo que sinto, que vejo e que faço, não do tamanho que as pessoas me enxergam (seguindo as palavras sábias de Carlos Drummond de Andrade).
Kalaf Angelo, “Estórias de Amor para Meninos de Cor”, p.165-166
OS ESTILOSOS
O meu fascínio pelo vestuário está, porventura, ligado a uma ideia romântica do passado: o tempo dos senhores de gestos nobres, das paixões avassaladoras e dos ideais pelos quais valia a pena dar a vida. O chapéu de coco que trago na foto no topo desta página carrega de certa forma esse simbolismo. A dedicação empregue no fabrico de determinadas peças do vestuário masculino, obedecendo a processos que remontam aos anos de mil novecentos e antigamente, são certamente a razão do meu entusiasmo pela arte do bem vestir.
Kalaf Angelo, “Estórias de Amor para Meninos de Cor”, p. 144
Poderia viver uma cidade sem mar, numa cidade sem lojas de sneakers, poderia até abdicar do sol durante todo o ano, mas certamente teria dificuldade em chamar de casa a um lugar onde nenhuma loja de vinis, nenhuma livraria existisse.
Kalaf Angelo, “Estórias de Amor para Meninos de Cor”, p. 77
Talvez seja a Europa, todos mudamos quando chegamos aqui: uns tornam-se ultra-africanos, outros ultra-europeus, vai-se lá saber porquê. E eu sou o primeiro a reconhecer que mudei! Mas na verdade não sinto que tenha escolhido um continente em detrimento de outro. Sinto-me qualquer coisa como entre… uma soma dos dois.
Kalaf Angelo, “Estórias de Amor para Meninos de Cor”, p. 233
O GAJO DOS BURAKA
(…)
Facto é que a questão da identidade, para além de ser um assunto recorrente, é algo a que dedico especial atenção. Fascina-me a multiplicidade de leituras que se podem fazer de uma. No meu círculo mais íntimo, o meu ser músico não se manifesta naturalmente com a mesma identidade com que se manifesta em público. A forma como interajo em privado difere da forma como me dou com os que me abordam na rua perguntando “Tu és o Kalaf dos Buraka?” ou com aqueles, na sua maioria jovens do liceu, que entoam tímidos “wegue wegue” quando passo diante deles. Por vezes, finjo que não os oiço, mas há dias em que me volto e aceno, divertindo-me quando tal reação lhes causa surpresa e os leva a acotovelar-se, dizendo “Eu disse-te que era ele, o gajo dos Buraka”.
Kalaf Angelo, “Estórias de Amor para Meninos de Cor”, p. 212
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