quarta-feira, 29 de outubro de 2008

LIVROS ESQUECIDOS

-Daniel, não podes contar a ninguém o que vais ver hoje. Nem ao teu amigo Tomás. A ninguém.
Um homenzinho com traços de ave de rapina e cabeleira prateada abriu-nos a porta. O seu olhar aquilino poisou sobre mim, impenetrável.
-Bom dia, Isaac. Este é o meu filho Daniel - anunciou o meu pai. - Está quase a fazer onze anos, e um dia ficará a tomar conta da loja. Já tem idade para conhecer este lugar.
O tal Isaac convidou-nos a entrar com um leve gesto de assentimento. Uma penumbra azulada cobria tudo, insinuando apenas traços de uma escadaria de mármore e uma galeria de frescos povoados de figuras de anjos e criaturas fabulosas. Seguimos o guardião através daquele corredor palaciano e chegámos a uma grande sala circular onde uma autêntica basílica de trevas jazia sob uma cúpula retalhada por feixes de luz que pendiam lá do alto. Um labirinto de corredores e estantes refletas de livros subia da base até à cúspide, desenhando uma colmeia tecida de túneis, escadarias, plataformas e pontes que deixavam adivinhar uma gigantesca biblioteca de geometria impossível. Olhei para o meu pai, boquiaberto. Ele sorriu-me, piscadando-me o olho.
-Bem-vindo ao cemitério dos Livros Esquecidos, Daniel.
(...) O meu pai ajoelhou-se ao pé de mim e, sustendo-me o olhar, falou-me com aquela voz leve das promessas e das confidências.
- Este lugar é um mistério, Daniel, um santuário. Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte. Há muitos anos quando o meu pai me trouxe pela primeira vez aqui, este lugar já era velho. Talvez tão velho como a própria cidade. Ninguém sabe de ciência certa desde quando existe ou quem o criou. Dir-te-ei o que o meu pai me disse a mim. Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha as suas portas, quando um livro se perde no esquecimento, os que conhecemos este lugar, os guardiães, asseguramo-nos de que chegue aqui. Neste lugar, os livros de que ninguém já se lembra, os livros que se perderam no tempo, vivem para sempre, esperando chegar um dia às mãos de um novo leitor, de um novo espírito. Na loja nós vendemo-los e compramo-los, mas na realidade os livros não têm dono. Cada livro que aqui vês foi o melhor amigo de alguém. Agora só nos têm a nós, Daniel. Achas que vais poder guardar este segredo?
O meu olhar perdeu-se na imensidade daquele lugar, na sua luz encantada. Fiz um sinal de assentimento e o meu pai sorriu.
- E sabes o melhor? - Perguntou.
Abanei a cabeça em silêncio.
- O costume é que a primeira vez que alguém visita este lugar tem de escolher um livro, aquele que preferir, e adoptá-lo, assegurando-se de que ele nunca desapareça, de que permaneça sempre vivo. É uma promessa muito importante - Para toda a vida - explicou o meu pai. - Hoje é a tua vez.

Carlos Ruiz Zafón - "A Sombra do Vento")

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