terça-feira, 12 de julho de 2011

Pessoa interessou-se pelo cinema?

Fernando Pessoa escreveu argumentos para filmes e sonhou criar uma produtora. Patricio Ferrari e Claudia J. Fischer coligiram todo esse material num livro lançado hoje em Lisboa.

Os autores pesquisaram todo o espólio de Fernando Pessoa, incluindo a sua biblioteca, e recolheram tudo o que dissesse respeito ao cinema. O resultado é "Fernando Pessoa - Argumentos para Filmes", segundo número da nova série das Obras de Fernando Pessoa que a Ática (chancela que hoje integra o grupo Babel) está a publicar, sob a coordenação de Jerónimo Pizzaro.

Embora o título destaque os argumentos que Pessoa escreveu para cinema - alguns deles já divulgados por Patrick Quillier em "Courts-Métrages" (2007) -, a ambição do livro, que será lançado às 20h00 na FNAC do Chiado, é bastante mais vasta. Ferrari e Fischer coligiram as (poucas) reflexões que Pessoa deixou sobre o cinema em apontamentos soltos, reuniram todos os papéis em que o poeta rascunhou os vários projectos que chegou a acalentar relacionados com o cinema, incluindo a criação de uma produtora, e compilaram as cartas trocadas com José Régio e com a revista Presença a propósito de um inquérito sobre cinema ao qual Pessoa acabaria por não responder.

No que respeita ao núcleo principal do livro, que reúne os argumentos escritos por Pessoa, esta obra acrescenta também enriquecimentos significativos ao que Patrick Quillier já divulgara. "Courts-Métrages" inclui cinco argumentos: dois escritos em inglês, um em inglês e português, e dois em francês, sendo que Pessoa não assume expressamente estes dois últimos como argumentos para cinema. E dos primeiros, Quillier oferece apenas a tradução francesa.

Ferrari e Fischer descobriram mais dois argumentos redigidos em inglês, e incluem a versão original e a tradução portuguesa de todos os textos, dando ainda as cotas dos documentos, bem como as suas características, o que confere a este volume características de edição crítica que "Courts-Métrages" não pretendeu ter. O livro abre com uma introdução dos autores e encerra com um excelente posfácio de Fernando Guerreiro, que coloca o caso específico de Pessoa no contexto da relação que mantiveram com o cinema as gerações de Orpheu e da Presença e, em particular, algumas das principais figuras de ambos os movimentos.

Bandidos & nobreza

Os dois novos argumentos agora descobertos são apresentados pelo próprio Pessoa, respectivamnte, como "Note for a silly thriller or a film" e "Note for a thriller, or film". Ambos narram peripécias em navios - um tópico muito da predilecção de Álvaro de Campos (pense-se em "Opiário" ou "Ode Marítima") -, centradas em objectos preciosos cobiçados por bandidos, mas que afinal nunca estiveram a bordo.

Dos restantes argumentos redigidos em inglês (um deles parcialmente em português), e que Quillier já traduzira, dois tratam de trocas de identidades e envolvem marqueses e duques. O mais completo dos dois é "The Multiple Nobleman", ao qual Pessoa deu título, e para o qual chegou a redigir vários diálogos.

Ainda em inglês, o autor escreveu "The Three Floors", uma ideia para um filme concentrada em dois parágrafos. Pessoa imagina um edifício de três andares, cujos ocupantes têm um estatuto social tanto mais alto quanto mais elevado é o piso que habitam. Mas em todos os andares se repete, com pequenas variações, a mesma cena.

Nos textos redigidos em francês, possivelmente datados dos fins de 1917, em plena época do cinema mudo, o poeta alterna, em duas colunas, descrições de cenas e interpretações delas. Por exemplo: numa coluna escreve "o actor fuma", fazendo-lhe corresponder, na coluna paralela: "Triunfo sobre os seus inimigos, elevação, comando, satisfação". Quillier inventou para estes fragmentos o neologismo "cinématonirique" e aproxima-os das posteriores experiências cinematográficas dos surrealistas.

A par destas incursões literárias, Pessoa ponderou criar uma empresa - a Cosmopolis - que substituiria a Sociedade de Propaganda Portugal e que auxiliaria a indústria do turismo, servindo, ao mesmo tempo, de "centro de propaganda superior do paiz". O cinema seria uma das linhas de actuação da Cosmopolis, que para tanto deveria incorporar uma produtora que efectivamente existia então em Lisboa. Este projecto parece depois ter sido integrado por Pessoa numa nova ideia, a criação do Grémio de Cultura Portuguesa, ao qual atribui uma secção cinematográfica. Finalmente, ainda no âmbito destas possíveis utilizações comerciais e propagandísticas do cinema, concebe uma produtora, a Ecce Film, para a qual chega a esboçar vários logótipos, que Ferrari e Fisher reproduzem. Não menos interessantes são algumas notas soltas, como aquela em que escreve (em inglês): "Na medida em que as coisas são não podem deixar de ser. As coisas passam na medida em que não são. (Símbolo cinematográfico)." Ou ainda a sua afirmação de que o único cinema onde existe arte é o russo e o alemão, o que parece consistente com os trechos em que critica o cinema comercial de Hollywood e as suas estrelas.

Finalmente, a breve correspondência com a Presença que este volume transcreve abre com uma carta a Régio, na qual Pessoa se dispõe a responder a um inquérito sobre cinema. Mas logo na carta seguinte emenda a mão: "Ao inquérito sobre o cinema não responderei. Não sei o que penso do cinema".

Nova poesia das imagens

A primeira conclusão a retirar do abundante material, maioritariamente inédito, que este livro reúne, defendem os autores, é a de que "a ideia de que Pessoa não se interessou pela cinema estava completamente errada". E recordam que esta tese era ainda defendida em 2008, na entrada sobre cinema do Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, coordenado por Fernando Cabral Martins e editado pela Caminho. Joana Matos Frias, autora da dita entrada, afirma expressamente que "Pessoa nunca se interessou pelo cinema", o que, segundo Ferrari, sugere que não teria tido conhecimento atempado da edição de Quillier, publicada no ano anterior.

Mas Ferrari e Fisher também admitem que o que encontraram não basta para se "construir uma teoria" da relação de Pessoa com o cinema, e lembram que este "não escreveu ensaios sobre o assunto, como António Ferro ou Casais Monteiro". Acham que o seu livro demonstra que Pessoa se interessava pelo cinema, mas não que "se interessava imenso por cinema".

De facto, é difícil defender, mesmo perante estas novas evidências, que a atenção de Pessoa pelo cinema suplantasse a que seria de esperar de qualquer cidadão europeu culto da época. Se o cinema apaixonou boa parte dos presencistas, o único que, na geração de Orpheu, se interessou seriamente pelo cinema parece ter sido António Ferro.

O que não quer dizer que, de um modo difícil de detectar em evidências textuais, o cinema, como algo que impregnava a cultura da época, não tenha tido importância na obra poética de Pessoa ou Sá-Carneiro. Mas, para darmos a devida dimensão a estas escassas e dispersas reflexões de Pessoa, basta pensarmos, por exemplo, em Guillaume Appolinaire, oito anos mais velho do que o poeta português, que, pela mesma altura, via no cinema a síntese de todas as artes e decretava que o livro ia desaparecer e ser substituído pelo filme. Uma mudança que Appolinaire saudava, acreditando que essa nova poesia das imagens, dispensando a palavra, daria aos poetas "uma liberdade até hoje desconhecida".

In http://www.publico.pt/Cultura/dois-mil-exemplares-de-argumentos-para-filmes-de-fernando-pessoa-lancados-esta-semana_1502365?all=1

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